of Ulm.

«Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rotschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saia deste passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.
- Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva.
E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. (…)



(...) - Que raiva ter esquecido o paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do «Americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o «Americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.»
[Os Maias, Eça de Queiroz]

«Parabéns, João da Ega.
Maria Eduarda Maia»



[* O título não tem nada que ver com o restante texto. Mas foi a melhor maneira de evitar o número «fatídico»!]

1 comentário:

Anónimo disse...

A vida e os livros são escritos da mesma forma: palavra a palavra; frase a frase, página a página. Cada minuto novo episódio, cada dia novo capítulo. Muitas existências se confundem com personagens que já lemos, algures, na narrativa da nossa vida ou, então, o virar da esquina tem o mesmo efeito de espanto de uma nova história, que está apenas à distância da página seguinte. E o acaso pode acabar por ajudar a que o fluir dos cruzamentos entre as pessoas, reais ou ficcionais, que podem muito bem construir uma identificação forte, mesmo que à base de “apenas” milhares de palavras.
À custa de leres tantas histórias, pensares em algumas insondáveis teorias e rires à custa e uma infindável quantidade de sátiras - tudo escrito! - acabaste por ler-me bem em quase todo os aspectos da personagem. Mesmo quando ela quer esconder-se, porque mesmo este virtual e virtuoso, também tem medo. E também é tímido, como os que são de carne e osso.
Este texto toca-me vitalmente e a homenagem de aqui estar é muito maior do que a importância das minhas próprias convicções, mesmo as que estão ali tão bem desfiadas.
Não vou agradecer, coisa que não é necessária entre amigos, mas vou dizer o óbvio: vou andar muito por aqui, para tentar arrancar aí de dentro muita energia positiva, a coisa mais importante para se ter, logo depois de acreditarmos no fatalismo muçulmano.

Até porque eu acredito que ela existe, apesar de todos os argumentos contra a minha própria convicção.

Um beijo,

Johann Gambolputty de von Ausfern- schplenden- schlitter (etc e etc) mittler- aucher von Hautkopft of Ulm,

também conhecido por Arquitecto e outra coisa meia palerma que começa por

R.